“Eu Tenho Tudo” estreia no Viga Espaço Cênico

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Texto do argelino Thierry Illouz, autor inédito em língua portuguesa, monólogo com atuação de Pedro Vieira traz aos palcos uma linguagem particular e violenta em uma real visão da
sociedade e da relação entre os homens do nosso tempo

Um homem ensandecido, ferido de ódio mortal, tem um suposto encontro com um outro numa estação de trem. Contra esse outro – que é suposto por jamais se revelar ao público como uma identidade ou como um rosto – o protagonista dispara imprecações e xingamentos, numa espécie de histeria incessante, como a mais pura expressão de uma pulsão de morte. Esse é o ponto de partida de Eu Tenho Tudo, monólogo com atuação de Pedro Vieira e direção de Cácia Goulart, que estreia dia 29 de janeiro, sexta-feira, às 21 horas, na Sala Piscina do Viga Espaço Cênico. A montagem traz, pela primeira vez ao Brasil, uma obra do argelino Thierry Illouz.

Eu Tenho Tudo (J’ai tout, no original) foi lido pela primeira vez em 1999 por Charles Berling, no Festival de Avignon. Em 2007, estreou no Théâtre do Rond-Point, em Paris, trazendo no elenco o ator Jean-Damien, sob a direção de Jean-Michel Ribes. Em 2014, teve uma nova encenação, dirigida e protagonizada por Christophe Laparra, do Théâtre de Paille. Essa mais recente montagem foi vista pelo ator Pedro Vieira, que viajou à França justamente a procura de um texto, que tivesse uma grande força e trouxesse uma discussão atual.

Para o ator a montagem reivindica a potência do texto de Thierry Illouz, repleto de ambivalências e contradições, em que o jogo infernal das relações e representações sociais em que o outro é demonizado não deixa de revelar de forma contundente o lodaçal subjetivo daquele que acusa de dedo em riste. “Neste momento em que passamos por uma inaudita turbulência política, com o inesperado recrudescimento de discursos conservadores e fascistas, em que o preconceito e a intolerância defendidos no âmbito privado se espalham, despudoradamente, pelas mídias sociais até descobrir as ruas onde não se constrange em mostrar a face, orgulhosos de si e cheios de certeza, só resta à arte – e notadamente o teatro, que é por excelência político desde o seu nascimento – apostar em expressões que não corroborem o que já se pensa, mas que suscitem a dúvida. De preferência, radicalmente”, explica Pedro.

Destruir é o começo do poder

O personagem de Eu Tenho Tudo encontra forças unicamente nas palavras, pois é tudo que lhe resta para existir, é sua única arma. Ele esbraveja, provoca e ameaça. “Destruir é o começo do poder” ele diz. O texto de Thierry Illouz proposto nesta encenação tem algo da memorável frase de Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”. O outro é o inferno, na medida em que nos impõe seu “Eu” e, para ser e se afirmar como sujeito, reduz o interlocutor a mero objeto. Mas o texto de Illouz tem ainda outros desdobramentos, como o fato de um sujeito só conseguir se situar em relação a si mesmo à medida que já não se distingue de um objeto. “Ter” passa a ser a medida da sua individualidade, e o “ter tudo” que perpassa todo o texto desde o título é de tal forma megalômano e pretensioso que só pode desembocar no seu extremo: o nada. “Tudo” é genérico demais para ser alguma coisa, e a cada vez que o protagonista enumera cada item que comporia esse “tudo” que ele possui, resvala no ridículo de expor-se numa aviltante pobreza existencial. Testemunho, portanto, de uma impotência.

A atriz Cácia Goulart (indicada ao Prêmio Shell de Teatro de melhor atriz em 2013 pelo monólogo A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói), que assina a sua segunda direção conta que o texto possibilita a construção de várias imagens. “É uma peça violenta e verborrágica, que fala sobre intolerância, fracasso e necessidade de poder, então optei por trabalhar com alguns opostos como claro e escuro, verdade e mentira e viver e morrer. Nessa montagem ‘estou’ diretora e a experiência como atriz ajuda muito com a linguagem mais minimalista que estou imprimindo ao texto”, diz ela.

Sozinho em um espaço público, que pode ser uma estação de metrô, o homem vai, aos poucos, se mostrando para o público, que funciona como seu interlocutor. “Reconhecer em Eu Tenho Tudo a semântica e a sintaxe com que as pessoas têm se dirigido umas às outras, as falácias, preconceitos e estereótipos através dos quais se relacionam, o linguajar hidrófobo com que expressam seu estreito quinhão de participação política, tudo isso desde o cotidiano, é refletir sobre o quanto terá sido preciso nos distanciar de nós mesmos para termos nos tornado, invariavelmente, sujeitos e objetos de insultos em contato com o outro, Não sabemos quem é esse homem e ele pode ser vários em um só representando o coletivo tirano, fascista e inquisidor que é nossa sociedade”, explica Cácia.

Inconsciente
Com poucos objetos em cena, apenas um banco e um espelho, a cenografia de Eu Tenho Tudo também realça a ambiguidade com botões dourados pelo chão, que podem ser moedas.

Cácia afirma que prefere esse espaço limpo para reforçar o poder da palavra na montagem. “Para mim, muitas vezes, o plano concreto de uma estação de trem, com as analogias óbvias que aí são suscitadas, mais a carga simbólica inerente a essa imagem, configura-se como uma espécie de fantasmática em que o destino certo de partida ou de chegada se confunde com um lugar-nenhum subjetivo, povoado de neuroses e traumas, sem um ponto seguro para a fixação de um eu e de um outro que finalmente – para bem ou para mal, para a vida ou para a morte – pudessem se relacionar”, diz a diretora.

Já a trilha sonora lembra sons de água, levando o público para dentro da cabeça deste personagem abissal que tenta sustentar-se na incongruência de um eu esfacelado.

O autor, Thierry Illouz, cuja obra é totalmente inédita em língua portuguesa, nasceu em Sétif, Argélia, em 1961. Advogado especializado em direito criminal e social, é dramaturgo, romancista e compositor. Eu Tenho Tudo (J’ai tout, no original) foi lido pela primeira vez em 1999 por Charles Berling, no Festival de Avignon. Em 2007, estreou no Théâtre do Rond-Point, em Paris, trazendo no elenco o ator Jean-Damien, sob a direção de Jean-Michel Ribes. Em 2014, teve uma nova encenação, dirigida e protagonizada por Christophe Laparra, do Théâtre de Paille. Thierry também é autor de artigos publicados no semanário Politis, em Paris. O seu mais recente romance lançado em 2014, La nuit commencera ganhou o Prêmio Simenon 2015.

Serviço:
A partir de 29/1, sexta-feira, às 21 horas, na Sala Piscina do Viga Espaço Cênico

Rua Capote Valente, 1323 – Sumaré (próximo a estação Sumaré do metrô)

Telefone: 3801-1843.

www.viga.art.br

Foto: Cacá Bernardes

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