Dona Maria Amélia:|da dor ao amor

0
1547

Foto:

Dona Maria Amélia

Ela é um exemplo de vida:
aos 83 anos, ainda trabalha na Secretaria Estadual de Assistência e
Desenvolvimento Social do Governo de São Paulo. Dona Maria Amélia
Vampré Xavier fala inglês, espanhol e francês fluentemente, trabalhou
como secretária bilíngue e foi, por muitos anos, membro atuante da
APAE, como consultora para assuntos internacionais. Ela mora em
Perdizes desde que se casou, no mesmo endereço, com marido e o filho
Ricardo, que tem Síndrome de Down. Numa manhã quente e ensolarada, ela
nos deu essa preciosa e simpática entrevista, que você acompanha agora.
Ao longo de quase uma hora de conversa, Dona Maria Amélia demonstrou
uma memória impressionante e uma energia que só encontramos raramente,
seja física ou moral.

Aos 83 anos, a senhora ainda está trabalhando?
Trabalho,
sim. Fui convidada pelo Sr. Amato, da Fiesp. Eu fui secretária do Dr.
Rogério Amato por três anos. E em 2006 ele pediu ao Governador Serra
que autorizasse a me contratar.

O que faz na Secretaria?
Sou
assessora do Gabinete do Estado. Trabalho com a Secretária Estadual
Rita Passos, que é deputada estadual. Ela criou um tipo de hospital-dia
para quem tem pessoas idosas e precisam sair para trabalhar. E ela
pretende fazer isso no projeto de Futuridade. Tem o projeto de moradia,
que se chama Vida com Dignidade, que prevê até a construção de uma casa
totalmente adaptada pessoas com mais idade.

A senhora é formada em quê?
Em
Letras, pelo Mackenzie. Eu era secretária bilíngue. Com o fim de
guerra, em 1945, com o desemprego, veio o desafio e foi muito bom para
uma menina como eu, pelo fato de eu saber inglês, que aprendi no
Mackenzie e ainda tinha professora particular.

Um de seus filhos é excepcional?
Sim, o mais velho, Ricardo. Hoje ele tem 56 anos.

Vem daí seu envolvimento com a APAE?
Sim,
fundamos a APAE de São Paulo, em 1960. Era um pequeno grupo de 10, 12
pessoas. Nós tínhamos filhos com problemas. Meu filho tinha de 3, 4
anos quando fundamos. Estávamos comprometidos, mas não sabíamos nada de
nada, não tínhamos a menor ideia, o que fazer com as sequelas… eles
tinham mil problemas devido à Síndrome de Down. Era muito complicado.
Vários médicos eram muito cheios de si e não davam confiança nem
assistência para a família. Hoje, tudo mudou porque a Organização
Mundial de Saúde declara que os pais são os maiores envolvidos e
esclarecidos. Somos os únicos que ficamos dia e noite, ficamos a nossa
vida inteira lidando com os nossos filhos.

E como foi a fundação da APAE?
Foi
uma época complicada. Fiz parte da primeira diretoria da APAE. Não
tínhamos sede. Nos reuniamos na minha casa, depois outra semana era na
casa de Ruth e Gilberto da Silva Telles, outra no Paraíso onde morava a
vice-presidente… No final de 1961, concluímos que era necessário ter
uma sede e aí alugamos uma casa perto da Igreja de Nossa Senhora do
Carmo. E já foi difícil porque meu marido, que era secretário geral da
APAE na época, foi ver se podia alugar aquilo, mas não conseguimos
porque acharam que nosso negócio era um risco. Aí, o marido da
vice-presidente, que era médico, falou que seria o fiador da APAE e
resolveu tudo. Sempre foi assim, muito difícil, mas todos tínhamos
interesse.

Naquela época era mais um tratamento para as crianças, não tinha a inclusão social que se tem hoje?
Sim.
Nós tínhamos uma amiga que se chamava Dra. Lilia Pereira. Ela era uma
pessoa que gostava da causa, era psicóloga no Rio de Janeiro e
trabalhava na Sociedade Pestalozzi. Ela gostava de ajudar porque não
era casada, nem tinha filhos e viajava pela Europa. Ela sabia que na
Dinamarca tinha tido um grande progresso sobre esse tipo de trabalho.
Ela trazia informações e dizia ‘vocês têm que se informar mais,
comunicar-se com eles’. Como eu era secretária bilíngue, nossa
presidente me deixou encarregada disso.

A senhora recebia documentos, traduzia e tentava implantar aqui?
Sim,
eu passei a fazer contatos com universidades americanas, com a
Inglaterra, com associações de pais e eles foram nos respondendo, nos
mandando documentos e nos informando. Toda a documentação da APAE de
São Paulo partiu dessa iniciativa. Fomos pensando como poderia ser a
fórmula básica. E foi muito legal porque anos mais tarde, em 2004, eu
estava em casa sossegada assistindo TV e recebo um telefonema em
espanhol. A pessoa era do Canadá, da Organização Mundial de Saúde, e
dizia que eu era convidada para ir para Montreal em outubro. Eu tinha
sido escolhido entre as 35 personalidades da América Latina como uma
pessoa de autoridade de capacidade intelectual. Eu achei que tinha
algum engano (rsrs).

E a senhora foi para Montreal?
Sim,
fui, ganhei o prêmio e falei em inglês em nome de todos aqueles países
que estavam ali como o Peru, Argentina, Chile, México, etc. Foi
fantástico, uma experiência notável.

E o que faz na APAE hoje?
No
momento apenas faço parte do grupo de envelhecimento dessas pessoas
deficientes. Quando nós fundamos a APAE, nossos filhos duravam 18, 20
anos de vida apenas. Os médicos diziam era difícil lidar com filhos
assim porque eles não iam andar, iam ser um vegetal, tudo isso era
besteira. Acontece que, com o tempo, a longevidade das pessoas no mundo
todo deu pulos imensos. A criança com síndrome de Down tem muita
facilidade de ter problemas de tiroide, problemas cardíacos e,
antigamente, 90% morriam de doenças cardíacas, mas com o tempo e as
tecnologias, elas acabaram sendo recuperadas e hoje são adultos e estão
muito bem.

E seu filho está bem?
Ele está bem. Ele tem
uma lesão muito grave na espinha, uma má formação da espinha dorsal que
ocorre na fase embrionária. Muitos anos atrás, a gente não sabia que o
ácido fólico é um dos principais componentes para ajudar a não ter esse
tipo de problema. Países como Canadá e Estados Unidos há mais de 20
anos têm uma lei que todas as mulheres grávidas ou que pretendem
engravidar devem tomar ácido fólico ou adquirirem na alimentação. O
Ricardo é muito alegre, ele é muito feliz da vida, muito contente.

E por causa dele a senhora escreveu um livro?
Sim,
Sobre o Outro Lado do Arco-Íris, que fala sobre meu filho Ricardo. Quem
me desafiou a escrever foi o escritor João Carlos Pecci, irmão do
Toquinho, que ficou paraplégico num desastre de automóvel. Depois de
tê-lo conhecido, dei para ele alguns questionários que eu tinha
respondido e ele escreveu uma carta linda que dizia mais ou menos
assim: ‘Maria Amélia, você sabe o que é ser egoísta, pois guarda apenas
para si uma sabedoria de amor e de doação’. Quando recebi, chorei e
fiquei muito emocionada, me senti desafiada e aí surgiu esse livro.

E como foi escrever?
Escrevi
para relatar meu dia a dia e achei que foi tão compensador, foi tão
bom. Muitas pessoas me convidaram para dar palestras sobre o Ricardo.

Desde quando está no bairro?
Desde
que me casei, em 1952. Moramos numa casa pequenininha. às vezes vem
alguém dizendo que vai construir prédios grandes e demolir todas as
casas pequenas, mas não temos vontade de morar em apartamento.

E o seu dia a dia?
Trabalho
só meio dia, na parte da manhã, o outro período tenho que olhar meu
filho. Não tenho quem olhe ele. Tenho uma faxineira que me ajuda e faz
aqueles serviços domésticos. Meu marido não trabalha mais, mas ele tem
que sair um pouco também.

Tem uma mensagem para os nossos leitores?
Hoje
em dia a deficiência não é mais um símbolo de vergonha ou um castigo
divino para os pais. Temos que entender que a deficiência é no mundo
todo. Todos os pais e mães que têm filho com Down sofrem e ficam se
perguntando ‘o que será que eu fiz para Deus me mandar esse filho?’
Essa pergunta, que muita gente faz nas grandes crises da vida, tem uma
resposta muito importante: tudo que é superficial passa, mas um filho
mexe com nosso interior.


NO COMMENTS

LEAVE A REPLY